Como a inteligência artificial está reescrevendo o futuro dos sistemas ERP

Por décadas, os sistemas ERP (Enterprise Resource Planning) foram o coração operacional das empresas. Desde os grandes projetos de integração das décadas de 1990 e 2000 até a era da nuvem, essas plataformas centralizaram processos, consolidaram dados e impuseram um padrão de controle e eficiência às organizações. Porém, uma nova transformação, mais profunda e menos visível, está em curso. A inteligência artificial está dissolvendo silenciosamente o ERP tradicional, não para substituí-lo, mas para reconfigurar completamente seu papel na arquitetura empresarial.

Essa dissolução não representa o fim dos ERPs, mas uma metamorfose em direção a uma infraestrutura cognitiva. Em vez de sistemas monolíticos e interfaces rígidas, surgem camadas de inteligência capazes de interagir, aprender e executar. A IA generativa introduz uma nova forma de operar: dashboards estáticos cedem lugar a agentes conversacionais que interpretam contexto, antecipam necessidades e tomam decisões autônomas, deixando de ser o centro da operação e passa a ser o alicerce invisível sobre o qual a inteligência organizacional se apoia.

Esse movimento já se reflete nas decisões estratégicas das empresas. Uma pesquisa da Rootstock Software, líder reconhecida no espaço de ERP, mostra que 82% dos fabricantes estão aumentando seus orçamentos de IA para 2025, impulsionados pela crescente necessidade de soluções ERP prontas para IA. O dado ilustra como o mercado está se preparando para uma nova geração de sistemas empresariais que aprendem, se adaptam e evoluem com o uso.

A lógica operacional tradicional, marcada por fluxos fixos e dependência humana, cede espaço a agentes especializados que atuam de forma independente em cada área da empresa. No financeiro, algoritmos realizam conciliações, fechamentos e previsões em tempo real. No supply chain, monitoram fornecedores, antecipam disrupções e ajustam estoques de forma preditiva. No comercial, interpretam padrões de comportamento de clientes, sugerem estratégias de precificação e otimizam resultados. Essa descentralização inteligente o torna menos visível, mas muito mais presente.

De acordo com a Gartner, a IA generativa está projetada para atingir US$ 126 bilhões até 2029, abrindo caminho para superar os investimentos clássicos em IA aplicada a ERP até 2032. O estudo destaca que os líderes de produto podem acelerar a adoção e a monetização priorizando casos de uso que entreguem resultados tangíveis e ROI mensurável, um movimento que reforça a transição dos ERPs para plataformas de inteligência contínua.

O aspecto mais disruptivo dessa nova era é o aprendizado contínuo. Diferente dos sistemas tradicionais, que exigiam customizações complexas e demoradas, os agentes de IA evoluem organicamente a partir da interação com dados e usuários. Eles aprendem a reconhecer padrões sazonais, identificar anomalias e correlacionar variáveis entre departamentos. Com isso, surgem insights que antes estavam ocultos sob o peso da burocracia digital, e diante disso deixa de ser um repositório estático de informações e se transforma em um organismo vivo que aprende e melhora a cada ciclo operacional.

Essa evolução exige uma nova filosofia de design tecnológico baseada em modularidade e interoperabilidade, em que os fornecedores que reconhecem essa realidade estão redesenhando suas plataformas para funcionarem como ecossistemas abertos, nos quais funcionalidades específicas podem ser orquestradas por agentes externos de IA. Nesse novo modelo, a especialização e a qualidade dos dados tornam-se o verdadeiro diferencial competitivo. Já os sistemas fechados e proprietários tendem à obsolescência, tornando-se silos desconectados em um mundo que exige fluidez e integração cognitiva.

Gestores deixam de ser operadores de sistemas e passam a ser orquestradores de inteligência. Em vez de compilar relatórios, eles interpretam narrativas dinâmicas geradas por IA e definem parâmetros estratégicos para a atuação dos agentes autônomos. Essa nova função demanda fluência digital, visão sistêmica e capacidade de estabelecer “guardrails” éticos e operacionais. O domínio da linguagem com a IA, o chamado prompt engineering empresarial, torna-se uma habilidade essencial para liderar na era das organizações cognitivas.

Contudo, a transição não é isenta de desafios, pois a qualidade dos dados torna-se fator crítico de sucesso, e muitas empresas ainda enfrentam legados fragmentados e inconsistentes. Há também resistências culturais, especialmente entre profissionais que veem na automação uma ameaça às funções tradicionais. Questões de segurança, privacidade e auditoria ganham complexidade à medida que decisões passam a ser tomadas por agentes autônomos. O avanço da IA no núcleo das operações exige, portanto, governança sólida, transparência e novos modelos de conformidade tecnológica.

O que emerge desse processo é o conceito de organizações cognitivas, empresas em que a fronteira entre o humano e o automatizado se dissolve em fluxos de trabalho inteligentes, preditivos e adaptativos. O ERP não desaparece; ele se transforma em infraestrutura invisível, o sistema nervoso que conecta dados, decisões e inteligência. O valor deixa de estar na posse do software e passa a residir na qualidade da inteligência que dele emerge. As organizações que entenderem essa virada, e abraçarem modularidade, interoperabilidade e aprendizado contínuo, serão as protagonistas da próxima era da eficiência empresarial.

*Com mais de 30 anos de experiência em tecnologia e negócios digitais, Fabio Seixas é empreendedor, mentor e especialista em desenvolvimento de software. Fundador e CEO da Softo, uma empresa de soluções de IA e software customizado, Fabio já criou e dirigiu oito empresas da economia digital. Sua trajetória inclui expertise em software, inteligência artificial, infraestrutura em nuvem, produtos digitais e web3.