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Conflito de interesses: o que o caso Banco Master revela sobre a governança corporativa no Brasil

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Por Patricia Punder, advogada e CEO da Punder Advogados

Conflito de interesses é, há muito, reconhecido como um dos riscos centrais de compliance e de governança corporativa. Ele aparece em políticas, códigos de ética, treinamentos e apresentações para investidores. Mas na prática, muitas organizações convivem com um paradoxo incômodo: exibem manuais sofisticados sobre o tema, enquanto a alta direção trata essas regras como algo “para inglês ver”. O discurso reforça a importância da integridade e as decisões estratégicas, porém flertam com zonas cinzentas nas quais a aparência de ética vale mais do que a ética efetiva.

O caso recente do Banco Master expõe esse paradoxo com uma clareza pouco confortável. O Banco Central decretou a liquidação extrajudicial da instituição, após meses de problemas de liquidez e o avanço de uma operação da Polícia Federal (PF) que investiga a emissão de títulos de crédito fraudulentos, em esquema que pode chegar a cerca de R$ 12 bilhões, segundo declarações do diretor-geral da PF. Na mesma esteira, decisões judiciais determinaram a prisão preventiva de integrantes da cúpula do banco, incluindo seu principal dirigente e diretores, no contexto de apuração ainda em curso, sem qualquer condenação definitiva até o momento. Do ponto de vista jurídico, se trata de investigações em andamento, submetidas ao devido processo legal. Do ponto de vista de governança e compliance, já é possível analisar o desenho de riscos que se tornou visível.

Tecnicamente, conflito de interesses é toda situação em que um interesse secundário, seja econômico, político, pessoal, familiar ou reputacional, tem potencial de influenciar, ou aparentar influenciar, o cumprimento de um dever primário de lealdade, diligência ou imparcialidade. Não se exige, para caracterizá-lo, a prova de um favorecimento concreto, basta que a estrutura da relação coloque em dúvida a independência da decisão. Por isso, em frameworks modernos de Governança, Risco e Compliance (GRC), o conflito de interesses não é tratado apenas como tema “moral”, mas como risco operacional e reputacional, com impacto direto em estabilidade financeira, competitividade e confiança pública.

O problema é que esse risco raramente se manifesta em atos grosseiramente ilegais, ele nasce nas zonas cinzentas, como patrocínios institucionalmente defensáveis, convites elegantes, jantares de networking, fóruns que misturam agentes públicos, empresários e regulados em ambientes de alta sofisticação, muitas vezes com baixa transparência sobre quem financia o quê. Nesses espaços, amizades por interesse são cultivadas sob o rótulo genérico de “relações institucionais”. Quando tudo corre bem, a narrativa é a de “diálogo entre setores”. Quando uma crise explode, os mesmos fatos passam a ser lidos como tentativas de influência indevida.

No caso do Banco Master, a estratégia de visibilidade e aproximação com centros de poder foi amplamente noticiada. A instituição figurou como um dos patrocinadores do 1º Fórum Jurídico Brasil de Ideias, em Londres, evento que reuniu ministros de tribunais superiores e outras autoridades, enquanto o próprio banco tinha ações em tramitação nessas cortes. Em outra frente, o Master adquiriu os naming rights do Banco Master Rocky Mountain Games, maior festival de esportes de montanha do país, com etapas em diferentes cidades, premiações em dinheiro e forte presença de marcas, influenciadores e governos locais. Soma-se a isso o investimento em ativos esportivos de grande apelo popular, como a Sociedade Anônima do Futebol (SAF) de um clube de futebol de massa, ampliando o alcance político e reputacional do grupo. Nenhuma dessas iniciativas é por definição irregular, mas o conjunto desenha um padrão: a construção de uma infraestrutura de relacionamento que vai muito além do marketing tradicional.

É justamente aqui que o conceito de conflito de interesses como risco de governança ganha densidade

Empresas e instituições públicas podem e devem conviver, dialogar, patrocinar eventos, apoiar iniciativas culturais e esportivas. Porém a pergunta central é outra: como esses patrocínios, convites e aproximações são avaliados à luz das obrigações de integridade, imparcialidade e isonomia? Em outras palavras, estamos diante de ações de comunicação legítimas ou de uma estratégia que depende, em medida relevante, de zonas cinzentas para gerar vantagem competitiva?

Grandes organizações costumam responder a essa pergunta com um arsenal de políticas, como códigos de conduta, normas de patrocínio, diretrizes sobre relacionamento com autoridades e pessoas politicamente expostas, regras de presentes e hospitalidade. No papel, tudo parece impecável, o desafio começa quando a alta direção enxerga tais instrumentos como ornamentos reputacionais, não como limites efetivos para suas próprias decisões. A empresa passa a operar com duas camadas, uma declaratória, destinada a reguladores, investidores e imprensa; e outra prática, na qual exceções são construídas sempre que uma oportunidade política ou comercial se apresenta.

É nesse ponto que o caso Master provoca desconforto. Se uma instituição financeira tem um programa de compliance minimamente estruturado, é razoável supor a existência de políticas sobre conflitos de interesses, patrocínios e relacionamento com agentes públicos. No entanto, as investigações em curso, sob o crivo do devido processo, revelam um modelo de negócios que combinava operações de altíssimo risco, suspeita de emissão de títulos sem lastro em escala bilionária e uma estratégia agressiva de exposição em espaços frequentados por autoridades públicas, formadores de opinião e figuras de grande influência. A conclusão lógica é que, se havia políticas, elas não foram suficientes para conter o apetite de risco da cúpula. E se não havia, a lacuna por si só é um problema de governança.

Do ponto de vista técnico, isso significa que não estamos diante apenas de um risco de compliance, mas de uma violação profunda dos próprios princípios da boa governança corporativa, tal como consagrados em referenciais amplamente aceitos, como os códigos de melhores práticas e as diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Transparência, por exemplo, exige que as informações relevantes sobre a situação econômico-financeira, a exposição a riscos e a natureza de relações institucionais sensíveis sejam comunicadas de forma clara, tempestiva e fidedigna a reguladores, investidores e demais stakeholders. Quando um banco enfrenta problemas de liquidez, está sob escrutínio de órgãos de supervisão e ao mesmo tempo, sustenta uma imagem pública robusta de expansão, patrocínios e crescimento, é legítimo questionar se a transparência foi exercida em sua plenitude.

Outro princípio afetado é o da equidade, já que governança exige tratamento isonômico a acionistas, clientes, credores e demais partes interessadas. Se determinados grupos passam a acreditar, mesmo que só na percepção, que possuem acesso privilegiado à informação ou capacidade de influenciar decisões por meio de proximidade pessoal, o mercado deixa de operar em igualdade de condições. A confiança de pequenos investidores em títulos emitidos por uma instituição supostamente “bem relacionada” pode ter sido, ao menos em parte, tributária dessa percepção. Quando a liquidação extrajudicial é decretada e se fala em fraudes bilionárias em apuração, é a equidade que se revela fragilizada.

Responsabilidade corporativa e prestação de contas (accountability) completam o quadro. Em um ambiente de governança maduro, a alta administração não apenas responde formalmente por suas decisões, mas se submete a mecanismos de controle interno e externo capazes de questionar estratégias excessivamente dependentes de relações pessoais ou políticas. Quando investigações levam à prisão preventiva de dirigentes, ainda que sem juízo de culpa, o sinal é de que as instâncias de controle, como conselhos, comitês e auditorias, não foram capazes, ou não tiveram autonomia suficiente, para conter o avanço de modelos de negócios que hoje são alvo de suspeitas graves.

Há, porém, um aspecto frequentemente ignorado nessa análise: a responsabilidade de quem aceita ser patrocinado. O foco recai, com razão, sobre o patrocinador que busca proximidade com magistrados, políticos, formadores de opinião ou ícones esportivos. Mas patrocínios são sempre uma via de mão dupla. Instituições que organizam eventos, associações profissionais, projetos culturais e esportivos, bem como seus destinatários, dispõem, ou deveriam dispor, de seus próprios programas de integridade e de critérios de due diligence sobre a origem dos recursos que financiam suas iniciativas.

É legítimo, portanto, perguntar por que estas estruturas não consideraram necessário recusar ou ao menos reavaliar o apoio de uma instituição cuja situação já levantava questionamentos? Em que momento a preocupação com independência, imparcialidade e reputação institucional se torna secundária diante da conveniência de viabilizar um evento, custear uma viagem, reforçar um orçamento? Essas perguntas não pretendem imputar culpa prévia a ninguém, mas expor uma assimetria incômoda, onde muitas organizações cobram integridade máxima de seus patrocinadores e parceiros apenas depois que a crise estoura, não antes.

Tal como as empresas, os patrocinados também podem se esconder atrás de políticas formais, exibindo códigos de conduta, comitês de ética, manuais de compliance, pareceres que “lavaram” o risco. No fundo, porém, a decisão de dizer “sim” a determinado patrocinador é uma decisão de governança, não apenas de captação de recursos. Quando esse patrocinador se vê, pouco tempo depois, no centro de uma operação policial e de uma liquidação extrajudicial, a pergunta volta com mais força: a instituição que recebeu o patrocínio fez o máximo que podia para evitar uma associação arriscada ou apenas confiou que se “todo mundo faz”, o risco reputacional seria diluído?

Esse jogo entre aparência e substância está no coração do problema. Em muitas corporações, o conflito de interesses é tratado como capítulo obrigatório em políticas internas, mas não como risco estratégico. Os executivos de topo, sejam de instituições financeiras, empresas abertas ou organizações patrocinadas, sabem reconhecer o discurso correto, sustentam em público que “não basta ser ético, é preciso parecer ético”. Porém na prática operam o inverso: parecer ético é suficiente, desde que nada impeça determinadas relações úteis ao negócio. Se cria assim uma cultura na qual o manual vale para a base da pirâmide, enquanto a cúpula se reserva o direito de interpretar exceções.

Mas o que deveria inquietar o leitor é o contexto mais amplo, como quantas outras instituições hoje se apoiam, em maior ou menor grau, em patrocínios oportunos, networking seletivo e amizades por interesse como elementos silenciosos de sua estratégia de negócios? E quantas, entre as patrocinadas, deveriam pensar que dizer “não” também é uma escolha de integridade?

No limite, o conflito de interesses deixa de ser um desvio pontual e passa a ser um modelo de funcionamento. Políticas existem, mas são relativizadas. Patrocínios são enquadrados como “ações institucionais”, ainda que tensionem a fronteira entre influência legítima e dependência simbólica. E a sociedade só descobre a extensão dessas zonas cinzentas quando uma operação policial, uma decisão do Banco Central ou uma liquidação extrajudicial as ilumina de forma abrupta.

Talvez a provocação mais importante, portanto, não seja perguntar “o que deu errado no Banco Master?”, mas “o que continua sendo considerado normal na cultura empresarial brasileira?”. Enquanto conflito de interesses for visto como algo que se resolve com uma cláusula padrão em códigos de conduta, e não como risco vivo de compliance e de governança, novos casos continuarão a surgir. E em cada um deles, patrocinadores e patrocinados voltarão a repetir o mesmo roteiro, com políticas impecáveis, escolhas convenientes, surpresa pública e uma sociedade que mais uma vez é chamada a confiar que desta vez aprendemos a lição.

Sobre Patricia Punder

Partner e fundadora do escritório Punder Advogados no modelo de negócios “Boutique”, une excelência técnica, visão estratégica e integridade inegociável na advocacia. www.punder.adv.br

- Advogada, com 17 anos dedicados ao Compliance;

- Atuação nacional, América Latina e mercados emergentes;

- Reconhecida como referência em Compliance, LGPD e ESG;

- Artigos publicados, entrevistas e citação em matérias de veículos renomados, como Carta Capital, Estadão, Revista Veja, Exame, Estado de Minas, entre outros, tanto nacionais quanto setorizados;

- Nomeada como perita judicial no caso Americanas;

- Professora na FIA/USP, UFSCAR, LEC e Tecnológico de Monterrey;

- Certificações internacionais em compliance (George Whashington Law University, Fordham University e ECOA);

- Coautora de quatro livros de referência em compliance e governança;

- Autora da obra “Compliance, LGPD, Gestão de Crises e ESG – Tudo junto e misturado – 2023, Arraeseditora.


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