Férias que ninguém vê: por que a quebra na rotina e as festas desregulam crianças autistas
Enquanto o país entra em clima de descanso, muitas famílias de crianças e adolescentes autistas enfrentam o período mais difícil do ano: férias, festas e terapias em recesso criam uma combinação intensa de mudanças sensoriais e quebra de rotina.
O que, para a maioria das crianças, representa alegria e tempo livre, para outras significa um impacto neurológico real. A rigidez cognitiva, dificuldade de lidar com mudanças inesperadas e transições, é um dos traços centrais do Transtorno do Espectro Autista.
Isso faz com que alterações bruscas de ambiente, horários, locais, pessoas e estímulos desencadeiem irritabilidade, regressões comportamentais, crises sensoriais, alterações de sono e perda de estabilidade emocional.
Uma meta-análise recente publicada em 2023, reunindo 59 estudos e mais de 4 mil participantes entre autistas e controles, mostrou que déficits de flexibilidade cognitiva aparecem desde a infância e se mantêm significativos na vida adulta. Não se trata de preferência por rotina; trata-se de neurobiologia.
Quando dezembro chega com mudanças sucessivas como férias, viagens, festas barulhentas, casas cheias, mudanças de cidade, o cérebro autista precisa processar informações em velocidade maior do que consegue, levando ao que especialistas chamam de “sobrecarga sensorial e cognitiva”.
O impacto sobre as famílias é imediato.
Um levantamento da Family Fund, em parceria com a University of Hertfordshire (2021), mostrou que pais de crianças autistas relatam mais estresse nas férias do que durante o período escolar, devido à ausência de suporte, aumento das demandas de cuidado e necessidade constante de adaptação dos ambientes.
Sarita Melo, mãe atípica e idealizadora da Jornada do TEA, descreve o que muitas famílias vivem mas, quase ninguém vê. “A proximidade das férias já me deixa em estado de alerta. Começo a ajustar horários, prever gatilhos, preparar minha filha para cada mudança. Dezembro fica bonito na rua, mas aqui dentro exige calma, estratégia e presença o tempo inteiro”, sinaliza.
Ela também reforça que, quando o recesso terapêutico chega, a sobrecarga aumenta. “Para muitas crianças, terapias não são atividades extras; são estruturadoras de comportamento, comunicação e regulação sensorial. A suspensão repentina gera desorganização emocional e comportamental. Um efeito conhecido na literatura clínica, mas raramente discutido fora dos consultórios”, conclui Melo.
A neuropsicóloga Luciana Xavier, referência nacional em neurodesenvolvimento, explica que a rotina é essencial para regular as emoções: “A rotina, para a criança autista, não é apenas conforto, é um organizador neurológico. Quando dezembro traz tantas alterações simultâneas, o sistema de regulação emocional trabalha em sobrecarga. Isso aumenta a probabilidade de irritabilidade, crises, dificuldades de transição e regressões”, explica a neuropsicóloga.
Ela ainda acrescenta que a quebra na previsibilidade, luzes e movimentações extremas no dia a dia, causam instabilidade e comportamentos julgados como inadequados : “Pessoas autistas processam transições de maneira mais lenta. Quando o ambiente quebra a previsibilidade várias vezes seguidas, a sensação interna é de instabilidade. Não é comportamento inadequado. É neurobiologia e muitos vão julgar como birra,” pontua Xavier.
A terapeuta ocupacional Katu Silva, com 30 anos de prática em Integração Sensorial, confirma o fenômeno: “As férias envolvem novos sons, novas pessoas, viagens, estímulos visuais e cheiros diferentes. Cada estímulo precisa ser filtrado pelo sistema sensorial. No autismo, essa filtragem muitas vezes é ineficiente ou desorganizada, então o cérebro tenta processar tudo ao mesmo tempo. Isso é exaustivo, ”sintetiza a TO.
Dezembro e janeiro também representam outro desafio raramente falado: a solidão das mães.
A jornalista e ativista Débora Saueressig, autista e mãe de um menino autista, descreve esse período como um exercício diário de engenharia emocional: “A cada dezembro, mães de pessoas autistas sustentam uma arquitetura emocional que não aparece nas fotos de Natal. É muita antecipação, muito planejamento, que muitas vezes não dá certo. É muita solidão e eu sinto na pele esse momento porque é desafiador para mim e para o meu filho também”, explica a jornalista.
Para Emília Gama, mãe de uma criança autista com síndrome de Down e deficiência intelectual, dezembro é um mês que exige o triplo emocional, física e socialmente.
Ela descreve o período como “amoroso, mas cheio de camadas invisíveis”. “Quando você é mãe de um indivíduo com múltiplas necessidades, tudo se intensifica: as mudanças de rotina, os ambientes cheios, as luzes, o barulho, a ausência das terapias. É como se o mundo acelerasse e a nossa casa precisasse desacelerar para proteger nossos filhos”, relata.
Emília reforça que a sobrecarga não nasce da maternidade, mas da falta de suporte social e institucional: “Nomear essa sobrecarga é o primeiro passo para que ela deixe de ser tratada como algo natural. Isso não é individual, é coletivo. E, muitas vezes, é no apoio entre mães na troca real, no acolhimento, no ‘eu te entendo’ que encontramos o único suporte possível quando tudo pára.”
Ações de apoio - ponto de vista dos especialistas
Para a Terapeuta Ocupacional Katu Silva, as estratégias de regulação sensorial são variadas e devem ser selecionadas com base no perfil individual de responsividade da criança, considerando sua história clínica, avaliações e os padrões já observados em terapia e em ambiente escolar: “ O incentivo ao brincar espontâneo e motor são estratégias que favorecem organização sensorial e emocional”, destaca.
Além disso, a TO acredita que esse tempo pode ser muito produtivo, pois permite maior proximidade familiar e uma rotina menos acelerada, o que abre espaço para o fazer compartilhado: “Cozinhar juntos, brincar, organizar atividades ou simplesmente descansar sem a pressão da agenda diária. Inserir a criança nas Atividades de Vida Diária (AVDs) e em pequenas tarefas domésticas também pode ser extremamente benéfico, desde que feito de forma lúdica, sem pressão e com suporte contínuo dos pais e cuidadores”, esclarece.
A neuropsicóloga Luciana Xavier lembra que manter alguns pilares fixos, como horários de sono, alimentação, tempo de descanso sensorial e combinados claros, geralmente ajuda muito: “Férias não precisam ter a rotina completa, mas precisam de estrutura. Nem tudo é terapia, mas momentos de interação, brincadeiras sensoriais, passeios ao ar livre podem ser potencialmente terapêuticos”, pontua Xavier.
Para Sarita Melo, muitos profissionais ainda falham em orientar famílias com estratégias práticas para o fim do ano. Por isso, ela reforça a importância de um trabalho multidisciplinar atualizado:
“O Congresso Jornada do Autismo, que será no RJ em 2026, mantém o compromisso das outras edições: levar prática. Terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, psicólogos, nutricionistas — todos aprendem como aplicar a ciência no cotidiano das famílias. O treinamento parental precisa fazer parte da formação desses profissionais para que as orientações cheguem de verdade na rotina de quem cuida,”pontua.
Sarita ainda ressalta que a inclusão exige continuidade: “O período de festas continuará desafiador enquanto sociedade, escolas, serviços e políticas públicas não entenderem que descanso não é universal. Inclusão também é respeitar os ritmos e a neurobiologia de cada criança”, finaliza a mãe de Elisa, autista não verbal de seis anos.
O que as famílias podem fazer?
Recomendações práticas dos especialistas
Estas orientações servem como norte.
O que funciona em uma família pode não funcionar em outra — e tudo bem — mas cada ponto abaixo é validado por pesquisas recentes em neurodesenvolvimento, integração sensorial e análise do comportamento.
Estratégias de acomodação sensorial
- Reduzir intensidade de luzes, ruídos e odores em casa.
- Oferecer fones abafadores, protetores auriculares ou óculos escuros em ambientes sobrecarregantes.
- Criar um “espaço seguro” sensorial: canto com almofadas, luz suave, poucos estímulos e brinquedos calmantes.
- Antecipar eventos e mudanças com apoio visual (rotinas ilustradas, calendário, fotos dos locais).
- Atividades de empurrar, puxar, carregar ou apertar objetos.
- Caminhadas, subidas em ladeiras, escalada em parquinhos, corrida leve.
- Brincadeiras de luta simbólica segura (compressões, travesseiros, cabo de guerra).
- Massageadores vibratórios ou compressões profundas guiadas.
- Balanço suave, redes, cadeira de balanço.
- Movimentos rítmicos e previsíveis (balanceios frontais e laterais).
- Evitar movimentos rápidos, rotatórios ou imprevisíveis se a criança tem insegurança gravitacional.
- Caixas sensoriais com materiais conhecidos (areia cinética, água morna, feijões, texturas agradáveis).
- Roupas confortáveis, sem etiquetas irritantes ou materiais ásperos.
Estratégias emocionais e de previsibilidade
- Explicar antecipadamente o que irá acontecer, incluindo fotos de locais, pessoas e trajetos.
- Estabelecer rotinas flexíveis, mas com pontos de ancoragem fixos (sono, alimentação, higiene).
- Criar combinados simples e visuais para festas e encontros.
- Preparar a criança para visitas e encontros com sinais combinados de pausa ou retirada.
- Oferecer intervalos sensoriais programados durante eventos longos.
- Permitir reclusão voluntária sem interpretar como desinteresse social.
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