Exame Comparativo do Novo Marco Legal do Seguro e da Lei Argentina
O Código Civil e Comercial da Nação Argentina publicado em 8/10/14, Lei 26.994, com as modificações efetivadas até a lei 27.587[1] não incorporou a disciplina do contrato de seguro dentro de seu texto.
As razões são relativas a uma existência já consolidada no sentido de que o contrato de seguro é disciplinado pela Lei sob número 17.418 já antiga, pois, data do ano de 1.967, “mas que reveste uma especial importância no movimento legislativo argentino, de renovação de seus códigos, elaborado cuidadosamente, se distinguindo por sua técnica depurada e porque assinala um marco importante desta matéria, já que, como a do México, são as únicas leis modernas da matéria, na América Latina, cuja integração econômica requer um sistema segurador moderno”[2].
A lei de seguros argentina já foi objeto de modificações pontuais, como por exemplo, a admissão de meios digitais como meio de prova, conforme se relatará com maior riqueza de detalhes, mais à frente.
Porém, sua antiguidade pode implicar em menor clareza frente a temas emergentes ou práticas modernas — exigindo melhores interpretações, ou também o auxílio de regimes complementares.
O modelo de lei especial, porém, permite, como irá fatalmente acontecer com o advento da nova lei securitária brasileira, a edição de regulamentos administrativos ou legislações suplementares servindo como modo ancilar para o fiel cumprimento daquele ordenamento legal.
De outro giro, o Código Civil e Comercial Argentino optou por não absorver matérias que já tinham legislação específica, sobretudo em setores econômicos regulados.
A ideia foi evitar sobreposição normativa e possíveis conflitos entre o Código e leis especiais, tudo a exemplo da novel legislação securitária brasileira.
O seguro, na Argentina, além de ser um contrato privado, envolve forte interesse público e regulação administrativa, consoante determina a (Superintendencia de Seguros de la Nación).
Por isso, manteve-se a legislação própria, de caráter técnico e alinhada à regulação estatal.
Com a edição da nova Lei de Seguros no Brasil,[3]se estabeleceu um microssistema jurídico autônomo para o contrato de seguro, reunindo em si normas específicas (contratuais, processuais, regulatórias) que atualmente estão dispersas, quer no atual Código Civil, quer em decretos, regulamentos da SUSEP e normas do CNSP.
Com sua entrada em vigor, a seção de seguros previstas atualmente em nosso Código Civil, será totalmente revogada bem como decretos regulatórios relacionados propriamente ao seguro na medida em que conflitarem com o novo ordenamento securitário.
A lei brasileira traz mais clareza, previsibilidade e coerência normativa, beneficiando tanto segurados quanto seguradoras, ao consolidar regras antes fragmentadas.
A autoridade reguladora SUSEP já está em processo de adaptação do arcabouço infra legal (normas, regulamentos, resoluções antigas) que deverão ser adaptadas ao novo texto legal.
Lembro nesta passagem o que escrevi alhures, vale dizer, este poder regulamentar não poderá extrapolar o conteúdo da lei. Caso contrário, haverá invasão do poder regulamentar extrapolando os limites da lei.
Quanto menos se regulamenta, melhor[4].
Este princípio também encontra guarida na hierarquia das leis, previsto atualmente em nossa atual Constituição Federal.[5]
Embora se enfatize à exaustão que a nova lei tem uma vacatio legis de 1 (um) ano entre sua publicação ocorrida em 10 de dezembro de 2024,sua vigência ocorrerá somente em 11 de dezembro de 2025.
Impende sublinhar, destarte, que contratos celebrados após a vigência da lei estarão sujeitos ao novo regime, enquanto contratos anteriores poderão muitos deles seguir sendo regidos pela legislação antiga, salvo cláusulas de transição ou conflitos expressos.
Neste norte, o Brasil passará de um modelo acrescido de normas setoriais e regulamentos para um modelo de lei setorial especializada atrelada a uma regulação complementar.
Para objetivar a comparação entre os dois modelos (Argentina e Brasil sob o novo marco), se poderá dizer que haverá uma maior segurança jurídica com previsibilidade, flexibilidade normativa e uma inquestionável capacidade adaptativa.
Outrossim, se alvitra que com a nova lei brasileira passe a existir uma capacidade de incorporar inovações tecnológicas e práticas do mercado, com controle regulatório sob supervisão estatal, objetivando evitar riscos de conflitos.
A consolidação das regras do seguro em um único diploma (Lei 15.040/24) reduz ambiguidades e facilita a consulta e interpretação normativa pelos operadores jurídicos, juízes e partes.
Ao revogar dispositivos dispersos e conflitantes, minimiza-se incertezas normativas.
A vacatio legis e a transição regulatória devem permitir uma “transição suave”, evitando surpresas abruptas no mercado.
No entanto, sua eficácia dependerá muito da qualidade da regulação complementar (normas da SUSEP e CNSP), já ventilado supra e da atuação organizada do Judiciário na fase de implementação.
Por outro lado, leis setoriais, quando mal estruturadas, podem ficar defasadas se não houver atenção durante sua formulação. E tal procedimento foi adotado no novo marco legal do seguro no direito brasileiro.
A dependência de regulação complementar, tanto do órgão normativo como do fiscalizador, implicarão em uma adaptabilidade que dependerá da capacidade técnica dessas entidades.
É o que ocorre atualmente na lei argentina securitária, posto que sua manutenção permite que o setor de seguros evolua por meio de reformas pontuais, sem implicar interferência no corpo normativo geral.
Isso já ocorreu com a implementação da Lei 27.444/2018, que modificou o artigo 11 da Lei de Seguros para permitir meios digitais como prova.
Neste viés, essa lei chamada “Simplificación y Desburocratización para el Desarrollo Productivo de la Nación”, trouxe mudanças importantes que modernizaram certos aspectos dos contratos de seguro no marco legal argentino. Abaixo faço o resumo desta lei argentina pinçando os principais pontos de modernização, com ênfase no contrato de seguro, a saber:
A Lei 27.444 visa simplificar e desburocratizar processos que incidem sobre o desenvolvimento produtivo, isto é, reduzir entraves regulatórios, permitir maior flexibilidade, incorporar meios digitais, etc.
Ela modificou várias leis, inclusive a Lei de Seguros - Lei número 17.418 - no que tange ao contrato de seguro em si.
Suas principais mudanças dizem respeito como dito supra na admissão de meios digitais como prova do contrato de seguro.
“Provar é convencer o espírito da verdade respeitante a alguma coisa”, na frase lapidar do Professor Moacyr Amaral Santos[6].
Neste sentir, o artigo 113 da Lei 27.444 em seu CAPITULO XIII, cuida dos Seguros na legislação argentina, substituindo o parágrafo primeiro do artigo 11 da lei de seguros original, declarando que o contrato de seguro só se prova por escrito e por qualquer meio digital.
No artigo subsequente o legislador argentino derrogou a lei 13.003, permitindo a regulamentação de seguro para casos de morte por parte de empregados do setor público sendo optativo para todos os demais casos.
Essa reformulação na legislação argentina representa uma modernização ao permitir que documentos, registros ou evidências digitais (como e-mails, mensagens eletrônicas, pdfs assinados digitalmente etc.), passem a ter validade probatória, desde que exista ao menos algum princípio de prova escrita.
Tal procedimento foi também adotado na nossa nova lei de seguros ao cuidar do artigo 54.[7]
Tais medidas agilizaram trâmites, reduzindo custos operacionais tanto para seguradoras como para segurados, além de facilitar o acesso (por exemplo, em áreas mais remotas) ou nos casos em que a preservação de documentos físicos seja difícil.
Mais ainda. Na revogação da Lei 13.003 portenha com ore estabelecimento de nova regulamentação, há um movimento para tornar obrigatórios certos elementos contratuais mínimos (como os citados acima), o que reforça a clareza e a previsibilidade nas apólices de morte para funcionários públicos nacionais como se salientou supra.
Em contrapartida, mudanças frequentes ou fragmentadas podem gerar dispersão normativa se não forem bem harmonizadas com o seu respectivo CCyC e outras normas correlatas.
Nesta toada, ambas as modalidades (lei especial ou lei especializada autônoma) são flexíveis. O diferencial será quão bem a regulação infra legal acompanhará as mudanças do mercado.
Nesta direção o novo marco legal de seguros no Brasil procurou modernizar o setor segurador, adequando-o a práticas contemporâneas (meios eletrônicos, digitalização, transparência, prazos, litígios alternativos).
A lei brasileira permite instrumentos de arbitragem, mediação e conciliação para litígios de seguros (o que é uma inovação em muitos contratos).
Contudo, a lei argentina em si é mais antiga e pode não conter diretamente dispositivos expressos para inovações emergentes, como por exemplo, IA, big data, blockchain, exigindo interpretação ou complementação normativa.
O modelo brasileiro, ao ser reformulado deve se mostrar mais apto para absorver inovações “de raiz”. Mas isso depende fortemente da capacidade dos reguladores em acompanhar o ritmo tecnológico.
A lei-síntese brasileira procura reduzir a dispersão normativa, mas até que a transição esteja concluída poderá haver conflitos entre normas antigas ainda vigentes e o novo marco, provocando determinadas incertezas que, certamente, serão objeto de judicialização.
Como o seguro já está “fora” do CCyC Argentino, há bastante tempo, o risco de sobreposição entre o código e a lei de seguros é menor, mas, sempre, poderá haver conflitos entre a lei de seguros e outras leis especiais ou regulamentos administrativos.
Alterações pontuais na lei especial podem gerar fragmentação normativa se não estiverem bem harmonizadas com o restante do ordenamento.
Em síntese. O novo marco brasileiro enfrenta risco de conflitos na fase de transição, mas estruturalmente tende a reduzir a multiplicidade normativa. Como enfatizado neste ensaio a Argentina já opera com menor risco de conflito entre Código e lei de Seguros, embora não esteja imune a choques inter legislativos.
O órgão regulador brasileiro deve harmonizar normas antigas ao novo texto, o que exige capacidade técnica e coordenação eficiente.
A centralização normativa pode facilitar fiscalização e uniformidade interpretativa.
De outro giro, a lei de seguros Argentina convive com uma regulação administrativa da Superintendencia de Seguros, que possui tradição normativa e regulatória no setor. Sua técnica de seguro está bastante vinculada à regulação da SSN, com poder de adaptação normativa e fiscalização.
Ambos os modelos dependem fortemente de reguladores fortes. O Brasil com o novo marco concentra mais responsabilidades regulatórias convergentes, o que pode oferecer mais uniformidade, mas exige alta competência regulatória.
Com base nos critérios analisados, algumas conclusões emergem:
O Brasil, com o novo marco legal, adota algo intermediário entre um “Código de Seguro” e uma lei especial: é uma lei setorial autônoma que substitui o tratamento no Código Civil, mas traz de forma mais centralizada e moderna a disciplina do contrato de seguro.
Esse modelo tende a melhorar a previsibilidade, reduzir dispersões normativas e adaptar o setor a novas práticas, desde que bem apoiado por regulação eficiente.
O modelo argentino (lei especial histórica) já funciona e é testado, com capacidade de modificação pontual, porém com limites para inovação profunda ou adaptação automática a novos desafios tecnológicos.
Portanto, diante da entrada em vigor do Marco Legal dos Seguros no Brasil, pode-se argumentar que o modelo brasileiro se aproxima de um “meio-termo otimizado” reunindo as vantagens da codificação (clareza, unidade normativa), mantendo maior flexibilidade por meio da lei especializada e regulação administrativa.
No entanto, esse sucesso dependerá de três condições centrais, a saber: qualidade técnica da regulação complementar pela SUSEP e CNSP; transição ordenada, de modo que contratos antigos e novos possam conviver com segurança jurídica, além de uma interpretação judicial coerente e alinhada ao espírito da nova lei, evitando retrocessos jurisprudenciais inesperados fruto de ativismos desnecessários do Poder Judiciário.
Espera-se que os tribunais adotem interpretação pró-consumidor em caso de dúvida (à semelhança do art. 47 do CDC), sem perder de vista a natureza técnica do contrato de seguro.
Isso implicará maior exigência quanto à redação clara de cláusulas, especialmente de exclusões e limitações de cobertura.
O Judiciário deve reconhecer e prestigiar cláusulas compromissórias e demais meios de solução extrajudicial de litígios (arbitragem, mediação), previstos expressamente no novo marco legal.
Outrossim, será preciso respeitar o caráter facultativo da adesão do segurado, especialmente em seguros massificados (consumo).
Deve prevalecer uma interpretação evolutiva, reconhecendo meios eletrônicos e digitais como válidos para formalização e prova do contrato.
A postura judicial deverá ser de incentivo à modernização, desde que respeitada a transparência e os direitos do segurado.
Finalizando, acredito que os nossos tribunais deverão adotar uma interpretação pró-transição ordenada, pró-segurança jurídica e pró-modernização, conciliando o texto da nova lei com a regulação técnica da SUSEP.
O maior risco no curto prazo, como adiantei acima, é uma hermenêutica intertemporal, ou seja, qual regime aplicar em cada caso concreto.
A médio prazo, o desafio será uniformizar a jurisprudência em torno de cláusulas típicas de exclusão de cobertura e da validade de cláusulas arbitrais.
Acredito que assim, em rápidas pinceladas, teremos um sistema adequado visando um bom funcionamento de uma lei que a mais tempo deveria ter sido aprovada. Porém, como dito no jargão popular, “antes tarde do que nunca”.
É o que penso.
Porto Alegre, 04/10/2025
Voltaire Marenzi - Advogado e Professor
[1] CÓDIGO CIVIL Y COMERCIAL DE LA NACIÓN. REVISADA POR EL PROFESOR DOCTOR ALBERTO J. BUERES. IN, JOSÉ LUIS DEPALMA EDITOR, 12ª EDICIÓN, 2023.
[2] Tradução livre do Prólogo da Primeira Edição de autoria de IssacHalperin. In, Seguros. Halperin e Morandi. Volume I, página IX. Depalma, Buenos Aires, 1.991.
[3] Lei nº 15.040, de 09.12.2024.
[4] Pontes de Miranda. Comentários à Constituição de 1.946, volume 2º, página 411.
[5] Do Processo Legislativo, artigo 59 da CF de 1.988.
[6]Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, volume 2, página 371. Editora Saraiva, 2010.
[7] Vide minha obra a Análise da Nova Lei de Seguros. Roncarati Editora, 2025, página 76.
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