O Vazio e o Olhar: Contra a Norma que Ignora o Engenho dos Homens (Destaque)
Há instantes em que o Estado, sob a máscara polida da eficiência, se afasta do engenho dos homens e ingressa num deserto retórico onde tudo é funcionalidade, agilidade, potência sem rosto, regras e direitos perdidos. Neste limiar, a CP CNSP 005/2025 não é apenas um protocolo: é precipício, é vazio que mira o futuro como quem não vê, é verbo que quer ser ação mas se dissolve antes de alcançar o mundo.
Pense-se no corretor de seguros — figura que, durante décadas, atravessou tempestades econômicas, ambivalências normativas, inumeráveis pactos e desencontros entre as partes. O corretor, em sua essência, não é só mediador. É intérprete dos riscos, leitor de destinos, conselheiro dos fragilizados. O que faz da profissão algo mais que técnica é o exercício contínuo de confiança, de lidar com a angústia e a esperança, de transformar incertezas em amparo. Não há dignidade maior do que aquela que se constrói no encontro com o outro — e todo ofício é sobretudo arte de presença.
Mas a norma, advinda dos comitês, surge como cartilha sem memória. Pretende simplificar, escorar-se na tábua de números, remendar sistemas com algoritmos e dispensar a ética em nome de plataformas e dar a outros a motivação de não existir sem autorregulação. E no seu afã, esquece que cada cláusula, por mais sucinta, carrega um mundo. “A ausência de sentido é o fracasso da forma”, diria um poeta do direito. Porque quando o Estado legisla para apagar pessoas, o que resta não é modernidade, é exílio.
O que se vê é vergonha líquida — não aquela que envergonha por excesso, mas que umedece lentamente o orgulho do governo até torná-lo invisível. O constrangimento, aqui, não será único; ele se reproduz a cada litígio, a cada denúncia, a cada consumidor perdido e à cada corretor tornado espectro. O processo legislativo ganha o tom acinzentado da sala burocrática, onde ninguém ouve sinos, ninguém escuta histórias, mas é o lobby da persistência da CP 22/2022. Recai sobre todos um cansaço — não só das lutas, mas das promessas que não se cumprem, mas dos ecos que não cessam.
Ainda assim, há quem olhe. O olhar dos resistentes, dos que não aceitam a pátina do novo [antigo?] como substituto da substância. O olhar que busca a justiça não só no texto, mas sobretudo nas digitais que os homens deixam no que constroem. O verdadeiro direito não é feito de linhas — é feito de laços. Não é plano; é relevo. Não é simples; é necessário.
Numa era em que tudo tende ao esquecimento, a verdadeira coragem institucional será lembrar: o Estado é tão digno quanto sua capacidade de proteger quem caminha nele. Não se trata de salvar profissões preservando castas, mas de guardar o engenho, o suor, o esforço, o dom de criar sentido — em cada ato, em cada contrato, em cada vida.
Quando a norma recua, não é por medo do processo. É porque, ante a justiça, desvela-se seu vazio. E quem observa o vazio sabe: só se faz história onde há coragem para sentir e vontade de permanecer humano.
ARMANDO LUÍS FRANCISCO
Jornalista
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