Brasil,

Privacidade de dados e vigilância (digital) epidemiológica

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Questão pode gerar um conflito de direitos entre proteção de dados pessoais e saúde pública

Vários países do mundo têm adotado tecnologias de rastreamento via telefone celular para monitorar as quarentenas e o número de infectados pelo coronavírus. A partir dessas informações, são desenhadas políticas públicas e ações para conter a disseminação da doença. Porém, atrelada a essas medidas de vigilância, surge outra questão: elas podem significar algum tipo de ameaça à nossa privacidade?

Na China e na Coreia do Sul, o governo utiliza aplicativos que permitem monitorar os cidadãos individualmente. Em Israel e em Taiwan, se uma pessoa deixa o celular desligado, pode receber uma visita da polícia que vai checar se ela está em casa.

Aqui no Brasil, desde o início do mês de abril, as empresas de telefonia (Vivo, Tim, Oi, Claro e Algar) anunciaram que repassariam ao governo federal dados sobre os seus mais de 200 milhões de usuários. O governo do Estado de São Paulo também está utilizando o rastreamento via celular para monitorar o alcance do isolamento social. Os gestores adotaram o modelo do uso de dados de localização agregados (que não incluem identificação pessoal) e anonimizados (desvinculados da pessoa titular). A partir dos dados, são gerados mapas de calor que indicam as áreas com maior ou menor movimentação de pessoas.

No caso do Brasil, a professora do Curso de Direito da PUC-Campinas, especialista em direito digital, Christiany Pegorari Conte, acredita que essa questão pode gerar um conflito de direitos, entre proteção de dados pessoais e saúde pública. “Exatamente por não existir um amparo legal específico, já que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) não está vigente, tenho receio das eventuais consequências que as medidas de monitoramento e acesso à informação, justificadas pela situação da pandemia, possam trazer”, afirma.

A LGPD (Lei nº 13.709) foi aprovada, em agosto de 2018, com o objetivo de regulamentar o tratamento de dados pessoais, digitais e não digitais, de modo a garantir o respeito à privacidade do indivíduo e, ao mesmo tempo, oferecer segurança jurídica aos agentes, tanto de empresas quanto do governo, que utilizam esses dados. A previsão inicial era que as penalizações ligadas ao não cumprimento da lei entrassem em vigor em agosto deste ano, mas, em decisão do Senado, no último dia 3 de abril, esse prazo foi adiado para 2021. “Em minha opinião, esse adiamento expressa falta de conhecimento sobre essa legislação, que poderia embasar claramente a situação da pandemia. Há artigos específicos que tratam do uso de dados em situações que envolvam tutela da saúde, incolumidade pública e proteção da vida”, afirma.

Riscos

As discussões sobre privacidade de dados não são novas. Toda a transformação tecnológica e comunicacional que vivenciamos nos últimos anos tem demandado novas interpretações sobre o conceito de privacidade em várias áreas e também no Direito. Ocorre que a pandemia acelerou essas discussões ao colocar em lados, aparentemente, opostos, a saúde pública e o direito à privacidade. Certamente, uma das inúmeras perguntas que ela deixará é como equilibrar o uso de dados pessoais com as medidas para controle de epidemias. E será muito importante acompanhar como e em que grau esse medida referente ao uso de dados será institucionalizada nos próximos anos.

De acordo com a professora, o principal risco é que esses dados possam ser usados para outros fins e não apenas para o combate à pandemia. “Em democracias frágeis como a nossa, o uso inadequado dos dados pessoais pode gerar algum tipo de perseguição política ou de controle de opinião. Além disso, como saber se eles vão continuar a ser usados após a pandemia?”, questiona.

Existem, além da própria Constituição Federal de 1988, legislações que abordam a questão da privacidade e do uso de dados, tais como a Lei de Acesso à Informação e o Marco Civil da Internet. Essas legislações apresentam princípios importantes sobre o tema, tais como finalidade, transparência, necessidade e adequação, que devem ser observados nessa situação de pandemia também. Esses instrumentos deveriam ser fortalecidos pela LGPD.

A nova lei criou a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), vinculada à Presidência da República, que deveria, entre outras funções, criar normas para a Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade, a fim de implementar e fiscalizar essas normas.

A despeito de a LGPD ter sido aprovada em 2018, o órgão ainda não está operacional, criando um vácuo institucional em um momento tão importante, em que medidas para conter a disseminação do coronavírus envolvem cada vez mais o uso de dados pessoais. “Tudo isso gera extrema insegurança sobre a aplicação prática dessa legislação, tanto para aqueles que lidam com dados de terceiros, quanto para toda a coletividade. Daí a pressão para que a vigência da LGPD seja postergada. Mas esse, definitivamente, não é o caminho adequado e prejudica tanto a proteção dos cidadãos, quanto as relações de mercado, uma vez que o Brasil não é visto como um país seguro para fluxo de dados, especialmente, internacionais”, afirma a professora da PUC-Campinas.

Um novo normal

Em artigo publicado no mês de março no jornal inglês Financial Times, o historiador Yuval Harari, que ficou conhecido como autor do livro Sapiens: uma breve história da humanidade (2011), afirmou que a mobilização mundial contra a pandemia da covid-19 deve provocar mudanças não apenas nos sistemas de saúde e na economia, mas também em nossa cultura. Para ele, as medidas tomadas hoje podem abrir um precedente para que governos monitorem a saúde de cada indivíduo, controlando dados como temperatura, pressão arterial e histórico médico, sob o pretexto de evitar situações semelhantes à atual .

As empresas historicamente rivais Google e Apple anunciaram este mês que estão trabalhando juntas em uma tecnologia que permite saber quando se está perto de um indivíduo contaminado por coronavírus. As empresas estão trabalhando, em conjunto com governos e organizações de saúde pública, com o objetivo de oferecer uma solução para conter a disseminação do vírus. O historiador questiona como garantir que toda essa informação não possa ser manipulada para vender um produto ou para favorecer um político.

Entre tantas perguntas ainda sem respostas, é certo que estamos desenhando uma nova relação com a nossa privacidade. “Ninguém passará ileso à pandemia. De um modo ou de outro, essa situação irá impactar a vida das pessoas, despertando uma maior discussão e preocupação com a vigilância e o monitoramento, a que estão submetidas diariamente, antes mesmo da situação da pandemia, mas que se intensificam neste período e demonstram o poder de controle”, opina a Profa. Christiany Pegorari. “Talvez gere, também, uma maior preocupação com aquilo que aceitam quando clicam, aleatoriamente e sem ler/entender, concordando com os termos de uso e privacidade, que implicam o compartilhamento de dados pessoais. Esperamos que isso aconteça!”, finaliza.

Por Patricia Mariuzzo


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