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A mitologia em ajuda à quarentena

Em tempos mais do que bicudos, vamos a algum contorno de nossos problemas ingentes, certamente os mais graves de todo o mundo.

A literatura mundial, nesse viés, contou com a coragem do poeta Borges, citando passagens memoráveis de outros, ainda que tornado cego em sua velhice. Coisas que nos estruturem igual coragem nessa travessia.

"O cavalo do mar"

"Diferentemente de outros animais fantásticos, o cavalo do mar não foi elaborado pela combinação de elementos heterogêneos; não passa de um cavalo selvagem cuja morada é o mar, e que só põe o pé em terra quando a brisa lhe traz o odor das éguas nas noites sem lua. Numa ilha indeterminada - quiçá Bornéu - os pastores peiam nas costas as melhores éguas do rei e se ocultam em câmaras subterrâneas; Simbad viu o potro que saía do mar e o viu saltar sobre a fêmea e ouviu seu grito.

A redação definitiva do livro As mil e uma noites data, segundo Burton, do século XIII; no século XIII nasceu e morreu o cosmógrafo Al-Qazwini, que em seu tratado Maravilhas da criação escreveu estas palavras: "O cavalo-marinho é como o cavalo terrestre, mas as crinas e a cauda são mais crescidas e a cor mais lustrosa e o casco é fendido como os dos bois selvagens e o porte é menor que o do cavalo terrestre e um pouco maior que o do burro". Observa que o cruzamento da espécie marinha com a terrestre produz belíssimas crias e menciona um potro de pelo escuro, "com manchas brancas como moedas de prata".

"Wang Tai-hui, viajante do século XVIII, escreveu na Miscelânea chinesa

"O cavalo-marinho costuma aparecer no litoral em busca da fêmea; às vezes o capturam. A pelagem é negra e lustrosa; a cauda é longa e varre o solo; em terra firme anda como os outros cavalos, é muito dócil e pode percorrer num dia centenas de milhas. Convém não banhá-lo

no rio, pois assim que vê a água recupera sua antiga natureza e se afasta nadando."

Os etnólogos procuraram a origem dessa ficção islâmica na ficção greco-latina do vento que fecunda as éguas. No livro III das Geórgicas, Virgílio versificou essa crença. Mais rigorosa é a exposição de Plínio (VIII, 67):

"Ninguém ignora que na Lusitânia, nas cercanias do Olisipo (Lisboa) e das margens do Tejo, as éguas viram a cara para o cento ocidental e são fecundadas por ele; os potros assim engendrados mostram admirável ligeireza, mas morrem antes de completar três anos."

O historiador Justino conjecturou que a hipérbole "filhos do vento", aplicada a cavalos muito velozes, originou essa fábula.

Para arrematar:

"Um cruzamento

Tenho um animal curioso, metade gatinho, metade cordeiro. É uma herança de meu pai. Em meu poder ele se desenvolveu por completo: antes era mais cordeiro que gato. Agora é meio-a-meio. Do gato tem a cabeça e as unhas, do cordeiro o tamanho e a forma; de ambos, os olhos, que são esquivos e faiscantes, a pele suave e ajustada ao corpo, os movimentos ao mesmo tempo dançarinos e furtivos. Deitado ao sol, no vão da janela, vira um novelo e ronrona; no campo corre como louco e ninguém o alcança. Foge dos gatos e quer atacar os cordeiros. Nas noites de lua, seu passeio favorito é a canaleta do telhado. Não sabe miar e tem horror de ratos. Passa horas e horas de tocaia diante do galinheiro, mas jamais cometeu um assassinato.

"Alimento-o com leite; é o que lhe cai melhor. Sorve o leite em grandes goles entre seus dentes de animal de rapina. Naturalmente é um grande espetáculo para as crianças. A hora da visita é aos domingos pela manhã. Sento-me com o animal sobre os joelhos, e todas as crianças da vizinhança me rodeiam.

Formulam-se então as perguntas mais extraordinárias, que nenhum ser humano pode responder: por que existe só um animal assim, por que seu possuidor sou eu e não outro, será que antes já houve um animal semelhante, e o que acontecerá depois de sua morte, será que se sente só, por que não tem filhos, como se chama etc. Não me dou ao trabalho de responder; limito-me a exibir minha propriedade, sem maiores explicações. Às vezes as crianças trazem gatos; uma vez chegaram a trazer dois cordeiros. Contrariando suas esperanças, não se produziram cenas de reconhecimento. Os animais se olharam com mansidão com seus olhos animais e se aceitaram mutuamente como um fato divino. Sobre meus joelhos, o animal ignora o temor e o impulso de perseguir. Aninhado contra mim, é como melhor se sente. Apega-se à família que o criou. Essa fidelidade não é extraordinária; é o reto instinto de um animal que, embora tenha na Terra inúmeros laços políticos, não tem um único consanguíneo, e para quem o apoio que encontrou em nós é sagrado.

Às vezes tenho de rir quando ele resfolega ao meu redor, enreda-se nas minhas pernas e não quer se afastar de mim. Como se não lhe bastasse ser gato e cordeiro, também quer ser cachorro. Uma vez - isso acontece com qualquer um - eu não via como sair de dificuldades econômicas, estava a ponto de acabar com tudo. Com essa ideia na cabeça, me embalava na poltrona de meu quarto com o animal sobre os joelhos; tive a ideia de baixar os olhos e vi lágrimas gotejando sobre seus grandes bigodes. Eram dele ou eram minhas? Será que esse gato com alma de cordeiro tem o orgulho de um homem? Não herdei muita coisa de meu pai, mas vale a pena cuidar desse legado.

Tem a inquietude dos dois, do gato e do cordeiro, embora sejam inquietudes muito diferentes. Por isso seu couro o aperta. Às vezes salta para a poltrona, apoia as patas da frente em meu ombro e aproxima o focinho do meu ouvido. É como se falasse comigo, e de fato vira a cabeça e me olha respeitoso para observar o efeito de sua comunicação. Para agradá-lo, faço de conta que entendi e movo a cabeça. Ele salta para o chão e brinca ao meu redor.

Talvez a faca do açougueiro fosse a redenção para esse animal, mas devo recusá-la porque ele é uma herança. Por isso terá de esperar até que seu alento acabe, embora às vezes me olhe com razoáveis olhos humanos, que me instigam ao ato razoável."

Franz Kafka

* Amadeu Garrido de Paula, poeta e ensaista literário, é advogado, atuando há mais de 40 anos em defesa de causas relacionadas à Justiça do Trabalho e ao Direito Constitucional, Empresarial e Sindical. Fundador do Escritório Garrido de Paula Advocacia e autor dos livros: “Universo Invisível” e “Poesia & Prosa sob a Tempestade”. Ambos à venda na Livraria Cultura.


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